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Os pais não podem repetir que tiveram uma infância mais despreocupada, mais livre e mais feliz que a dos seus filhos, sem que tirem as consequências que devem de tudo isso, mudando seja o que for, para melhor, na vida das crianças. Nem podem reconhecer que estudavam menos e que brincavam mais, ao mesmo tempo que dão a ideia de estar indiferentes ao modo como nada disso parece chegar para interpelarem a escola e a mudarem.
Eu acredito que são as pessoas que mudam o mundo. Mas reconheço que ele também adoece e se “constipa”. E que hoje, mais do que nunca, em relação à vida das crianças, ele precisa de ganhar em sabedoria, precisa de mais coração e de voltar a ter um rosto humano. Precisa de deixar de se preocupar, obsessivamente, com o seu futuro, enquanto, por distração, lhes estraga o presente. E precisa de deixar de as imaginar como “produtos normalizados”, não permitindo que sejam – como têm de ser! – na vida como na escola, mais singulares e desiguais.
Eu acredito que conhecer nos dá à luz. Mas que é com as memórias indispensáveis, tecidas por pessoas preciosas, que se lê o mundo. E é com elas que este “primeiro, aprende-se, e, depois – logo se vê – talvez se viva...” (que domina, hoje, tristemente, a vida das crianças) irá morrendo, todos os dias, um bocadinho. E que só assim as crianças serão mais felizes e mais crianças.
Eu acredito que “sempre que um homem sonha” o mundo não pula nem avança. Porque os sonhos que se sonham são muito privados e quase solitários, até. Mas os sonhos que se repartem, e se costuram com paixão, a várias mãos, ficam mais simples e mais bonitos. São uma espécie de: “Sim, nós queremos!”, com que se junta aquilo que de precioso a memória nos dá e as convicções com que a sabedoria nos aconselha. É disso que as crianças precisam por parte dos pais: duma revolução tranquila que lhes dê o futuro sem lhes tirar o presente!
É por isso que acredito que podemos começar a mudar o mundo por aquilo que mais nos une: o mundo pula e avança quando muda o modo como vive cada criança! E é por isso que vos proponho que nunca nos cansemos de afirmar que:
1. Queremos um mundo onde as crianças continuem a compreender que, muito mais que a técnica, o melhor do mundo são as pessoas! (E que, por isso, devia ser proibido, nas refeições de família, tablets, televisões e telemóveis. Aliás, devia haver RESTAURANTES AMIGOS DA FAMÍLIA, daqueles que, à porta, não deixam de recomendar que não se use qualquer objeto que afaste as pessoas do olhar umas das outras.)
2. Queremos um mundo onde as crianças nunca deixem de ter tempo para serem crianças. Onde a família esteja antes da escola e o estudo de braço dado com o brincar! E onde o direito ao tempo livre seja sagrado, já que ele é o lugar onde a infância se apura e engrandece e onde a fantasia se alimenta e robustece.
3. Queremos um mundo de crianças que “tirem do sério” os pais. Daquelas que os vencem pelo cansaço e que se entregam, com paixão, a qualquer tira-teimas. Mas que nunca desistem de ser crianças! O que só é possível quando os pais não se esquecem dos filhos que foram.
4. Queremos um mundo onde as crianças não se movam em bicos dos pés, nem queremos que mexam “nos intestinos das coisas” com as pontas dos dedos! Queremos um mundo de crianças que ocupem espaço mas que sejam delicadas, e que não andem pela vida nem conheçam como quem faz cerimónia.
5. Queremos um mundo de crianças que façam asneiras! Mesmo que, convictamente, as façam “sem querer”! E onde se portem mal e ponham problemas aos pais. Mas crianças educadas!
6. Queremos um mundo de crianças “abelhudas”. Daquelas que se perdem, pelo menos, uma vez. Mas que são prudentes, autónomas e despachadas.
7. Queremos um mundo de crianças que brigam. Daquelas que acabam sempre a dizer: “Quem começou, foi ele!”. Porque as brigas arejam a alma. E é com ela que a vida se ama e se descobre.
8. Queremos um mundo onde as crianças pensem com o coração e com o corpo. Onde o corpo não seja um adereço e a cabeça não sirva, unicamente, para imitar e repetir. E onde a vida se invente e se conheça sempre que, alguém pelas crianças, a vire do avesso.
9. Queremos um mundo onde as crianças acreditem em bruxas, duendes, fantasmas e papões. E onde os heróis e as personagens das histórias sejam “pessoas reais” que deem forma, argumentos, enredos e histórias àquilo que se sente mas não se vê e a tudo o que se vendo não se sente.
10. Queremos um mundo onde as crianças se continuem a sujar enquanto aprendem. Um mundo que as deixe contar pelos dedos e falar pelos cotovelos. Onde tenham tinta nos dedos e chapinhem na lama ou brinquem à chuva. Porque um mundo de crianças uniformizadas e atiladas é uma milícia de assustados e nunca um vendaval com que se ama o futuro.
11. Queremos um mundo onde as crianças corram e corram, e brinquem na rua! E onde esfolem os joelhos, pelo menos, todas as semanas. E onde se magoem, claro. Para que os pais façam de mágicos, a seguir, quando acolhem uma dor e a sossegam com o furor de um só beijinho.
12. Queremos um mundo onde as crianças se possam irritar. E onde façam birras e possam agredir. E enquanto ligam fúria e frustração, aprendem a dizer não, de olhos nos olhos, com lealdade e maneiras.
13. Queremos um mundo onde às crianças não se poupe toda e qualquer dor. Alguma dor faz bem à saúde! Mesmo que um sofrimento tenha a ver com uma desilusão, das mais pequeninas. E onde qualquer pequena dor não seja considerada um imenso traumatismo. É verdade que as dores nunca são nem justas nem necessárias. Mas é também verdade que são as pequenas dores (duma espera que se estica, duma revolta que nos pontapeia ou dum mundo que nos desconsidera) que dão o sal com que se vai de sabichão à sabedoria.
14. Queremos um mundo de crianças que corram riscos! Pelo menos, um ou outro, dos mais pequenos, de vez em quando. Um mundo onde as crianças entendam que um risco serve para olhar o medo de olhos nos olhos e para desafiar a sensação, desconfortável, de ser pequenino.
15. Queremos um mundo de crianças que não sejam nem exemplares nem adultos em miniatura. E que tenham, de entre todas as habilidades que orgulham os pais, o imenso talento de serem crianças: com a cabeça no ar, a vista na ponta dos dedos e com língua de perguntador. Um mundo onde as crianças sejam só crianças. Um mundo em que elas errem. E onde se engasguem e tenham dias maus. E onde tenham “quotas de parvoíce” que nunca se cansem de desbaratar.
16. Queremos um mundo onde as crianças acreditem no sonho e na paixão! Um mundo onde – pelo silêncio com que reage e pelo medo com que não se opõe àquilo em que acredita – nunca se fique, em relação a elas, pelo “podemos”. Porque é com cada “sim, nós queremos!”, a propósito daquilo que acreditamos ser o melhor para elas, que o mundo se conforta e a vida se abraça. Um mundo que se constrói com o melhor da infância dos pais: mais despreocupado, mais livre e mais feliz! Mas um mundo com futuro e com presente.
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